segunda-feira, outubro 31, 2005   

 

 

«Ontem construi um barco de pedra.
Não resultou.


Do meu ponto de vista, o oceano ainda não se encontra preparado para as grandes invenções.
Um barco de pedra é uma grande invenção.
A água não percebeu assim, paciência.

Gosto de inventar coisas.
Principalmente coisas inúteis.
Por isso mesmo umas pessoas chamam-me poeta, outras vagabundo.
Infelizmente são mais as pessoas que me chamam vagabundo.
Mas tudo bem.
O mundo sempre foi assim.
Sempre houve maior número de idiotas do que de outras pessoas.
A isso chama-se multidão.

Se um tipo fica sem voz vem logo uma data de gente oferecer remédios para a garganta, mas depois, quando começamos a falar , ninguém nos ouve.
Dão-nos remédios para a garganta e depois pedem-nos silêncio.
Não me parece bem.
Ou não nos davam os remédios,
ou deixavam-nos falar.

Enfim.

O mundo é isto.»

Gonçalo M. Tavares, 'O Homem ou é Tonto ou é Mulher'

 

domingo, outubro 30, 2005   

 

gripe das aves II

 


cá em casa deixou de se usar wc pato.

 

sexta-feira, outubro 28, 2005   

 

estás à minha espera, Lisboa?

 


serei breve. do 'lado de cá' respira-se melhor.

 

 

 

excerto para um amigo

 

«(...)
E eu direi:
- Dantes, eras uma visão. Sentia uma luz acender-se na pele e eras tu. Hoje, preparo e bebo venenos para que o brilho daquilo que já não és venha ao de cima, se solte do sangue e estremeça, cintile e não se apague.
Tu:
- O medo, o grande medo que se confunde com a serenidade, devora-te. E se nos tocarmos perderemos a inocência; ou, talvez tu morras e eu ressuscite. Mas uma coisa é certa: não nos cruzaremos mais, estamos definitivamente sós. Eu, enterrado. Tu, respiras.
Eu:
- Quero morrer perto de ti, de nada me servirá morrer inocente.
Tu:
- Aqui, nesta treva, o que é que parou no tempo? As nossas vidas? A paisagem? O mar? Do qual nunca soubemos a idade...
Eu:
- Quando sentia o teu corpocontra o meu ouvia, lá fora, a fúria o mar. Era um presságio de felicidade, mesmo sabendo que só o mar de outras terras é belo.
Tu:
- Continuas a escrever demais, matas tudo com as palavras. Olha como eu te olho. Olha para mim e cala-te. Devias encher a caneta com tinta envenenada.
Eu:
- O último deserto que me resta de ti é a noite da escrita. Nela te mantenho vivo, amante morte. Já não possuo bens e não prevejo herança nenhuma. Vivo para a travessia do corpo que me sepultou na memória... o teu.
Tu:
- Aquele que se prepara para morrer tem que povoar a alma com tudo o que vai abandonar. Não chegues aqui de coração vazio. É insuportável estar morto, sem nada que nos habite. A morte não admite distracções; por isso, a maior parte das pessoas não sabe morrer, desfaz-se.
Eu:
- Não há vergonha em dizer ou escrever isto: amo-te ainda.
(...)»
Al Berto, 'O Anjo Mudo' (págs. 92,93,94)

 

quinta-feira, outubro 27, 2005   

 

 

a chuva regressou. com ela arrasta-se a [tua] ausência que me doía nos dias de sol. sou feliz assim: à chuva.

 

quarta-feira, outubro 26, 2005   

 

[habito um mundo repleto de sentidos aconchegados]

 


e porque entre o gesto e a palavra existe um complemento, digo: anda cá. abraço-te.


 

terça-feira, outubro 25, 2005   

 

:')

 

 

segunda-feira, outubro 24, 2005   

 

serenamente à escuta

 



Invenção do Amor

Nas tuas mãos repousa a minha vida

falta-me um gesto teu para acordar
pássaro triste, asa enfraquecida
sem o teu corpo, o céu para voar
nas tuas mãos deixei a minha vida
parar

Se tu soubesses tudo o que eu invento
se adivinhasses quando eu te chamo
amiga, noiva, nardo, irmã, lamento
rosa de ausência que desfolho e amo
se tu soubesses como o tempo é lento
esperando

Tu voltarias como o sol na primavera
trazendo molhos de palavras como cravos
trazendo o grito de uma força que se espera
e cheira a ceiva, medronhos bravos

Tu voltarias como a chuva no outono
trazendo molhos de palavras como nuvens
trazendo a calma que abre as portas para o
sonho
trazendo o corpo sabendo a uvas, tu voltarias
cantando

Das minhas mãos renasce a nossa vida
e sei que posso falar-te a toda a hora
basta cantar-te para possuir-te
és o sítio onde o canto se demora
estou a inventar-te e a destruir-te
agora
agora

José Carlos Ary dos Santos

 

 

 

gripe das aves

 


já me preveni: deitei fora o brinco com a pena de falcão.

 

domingo, outubro 23, 2005   

 

constatação de fim-de-semana

 

às 3h30 da manhã as portas dos prédios não abrem.

 

 

 

perdidos e achados

 

encontrou-se:

1 isqueiro vermelho;
1 pastilha elástica já usada;
1 caneta com tampa amarela;
1 dvd e 4 livros do 'Sin City' >B)

 

sexta-feira, outubro 21, 2005   

 

 

tinha agora muitas ruas para passear o desencanto. não sabia, mas a alma estava esfrangalhada como um navio depois do naufrágio. os olhos eram velas desfeitas e os braços mastros partidos a vogar sem destino por percursos já quase irreconhecíveis. quis arrancar os olhos (sombrios sonhos da paixão incompleta), quis arrancar os cabelos (teias desfeitas pelos vendavais do abandono), quis esquecer que tinha muitas ruas para passear o desencanto.
não fazia mais que chegar. chegar sempre depois. chegar e já partir. (porque é preciso que se diga que, mal se encontraram, nesse preciso instante, começaram a separar-se). era agora um veleiro triste depois do naufrágio. viu multiplicarem-se os adeuses que a perseguiam desde a infância e as gaivotas riscavam despedidas no crepúsculo da chuva. cumpriria o ritual do riso e das lágrimas. no fim, talvez arrancasse os olhos e vincasse as feridas a sangrar. com um punhal.

 

quinta-feira, outubro 20, 2005   

 

constatação hispânica

 


Altafulla seria um belo sítio para viver se comessem menos tomate.

 

terça-feira, outubro 18, 2005   

 

 

partir v. tr. v. int. v. refl.

partir: Conjugar do Lat. *partire por partiri

v. tr.,
dividir em partes; repartir; distribuir; quebrar; despedaçar;

v. int.,
pôr-se a caminho; seguir viagem; abalar; ausentar-se; principiar; ter origem; confinar;

v. refl.,
ausentar-se; quebrar-se.

Parto sem dor

E agora eu vou-me embora
e embora a dor
não queira ir já embora
agora eu vou-me embora
e parto sem dor

E parto dentro de momentos
apesar de haver momentos
em que dentro a dor
não parte sem dor.


Sérgio Godinho (Campolide)

 

segunda-feira, outubro 17, 2005   

 

dos domingos

 

os domingos são assim: percursos aguados como se lhes tivessem atravessado um rio.
aos domingos não vou a casa: aos domingos a casa retorna ao exterior de mim.

 

 

 

[sou como o sossego sei esperar]

 

hoje acordei a cantar isto:


Muitos sóis e luas irão nascer
mais ondas na praia rebentar
já não tem sentido ter ou não ter
vivo com o meu ódio a mendigar.
Tenho muitos anos para sofrer
mais do que uma vida para andar
bebo o fel amargo até morrer
já não tenho pena sei esperar.
A cobiça é fraca melhor dizer
a vida não presta para sonhar
minha luz dos olhos que eu vi nascer
num dia tão breve a clarear.
As àguas do rio são de correr
cada vez mais perto sem parar
sou como o morcego vejo sem ver
sou como o sossego sei esperar

Canção Da Paciência - Afonso Zeca

 

sexta-feira, outubro 14, 2005   

 

 

Por um rosto chego ao teu rosto,
noutro corpo sei o teu corpo.
Num autocarro, num café me pergunto
porque não falam o que vai
no seu silêncio aqueles cujo olhar
me fala da solidão.
Esqueço-me de mim. Tão quieto
pensando na sua pouca coragem, a minha
sempre adiada. Por um rosto
chegaria ao teu rosto, mesmo de um convite
ousado fugiria, esta mão conhece-te
e desenha no ar o hábito
por que andou antes de saíres
do espaço à sua volta. Estás longe,
só assim podes pedir algumas horas
aos meus dias. Sem fixar a voz
a tua voz é uma corda, a minha
um fio a partir-se.

Helder Moura Pereira, in 'Poemas de Amor
- Antologia de Poesia Portuguesa' Organização e Prefácio Inês Pedrosa

 

 

 

 



está frio. ou então sou eu que me alimento por dentro, irremedialvelmente sórdida. e com frio. no avesso. nas horas subterrâneas de mim. por dentro. (como chegar, apesar do frio, a um lugar de partida? sem dar um único passo?) tenho agora a certeza. o mundo está parado. e as pálpebras secam. uma a uma. rapidamente. desnecessárias.




há uma camada de pó que cobre tudo.

 

quinta-feira, outubro 13, 2005   

 

 

«As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, oedenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. (...). Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.
(...)
Cada palavra é dita para que não se ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva verde e fresca que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto.
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»
José Saramago, Deste Mundo e do Outro (crónicas)

 

 

 

há dias assim

 

os meus dedos movem-se, furiosos, por todos os tampos de todas as mesas.

alguém me vê vendo o que não existe em mim.

 

 

 

 

um ramo de árvore com
todas as linhas da mão
acima da linha da água
para seguir os veios
vermelhos e azuis
que levam ao mar.

 

quarta-feira, outubro 12, 2005   

 

 

a morte não me
assusta, hei-de voar-lhe
no céu da boca
assim que se prepare para
me engolir

três minutos antes de a maré encher, valter hugo mãe

 

terça-feira, outubro 11, 2005   

 

 

«Outono

Uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no Outono. E a canção
que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É outono
a pouco e pouco despem-se as palavras.»

Joaquim Pessoa in O Pássaro no Espelho

 

 

 

 




a insónia é uma enorme parede branca onde desenho barcos e projecto fugas.

 

segunda-feira, outubro 10, 2005   

 

das cenas caricatas que me acontecem durante a pausa para o almoço

 

- boa tarde. não estou a conseguir encontrar nas prateleiras o livro que procuro, pode ajudar-me?
- concerteza.
[dirige-se para o computador. liga-o na base de dados da livraria]
- então diga lá o nome do livro.
[digo-lhe o nome do livro]
- desculpe, não se escreve com 's' é com 'c'.
- ah!, pois. estava distraída. bem, mas com este nome não existe. diga lá o nome do autor.
[digo-lhe o nome do autor]
- humm... não, esse livro não existe.
- não o têm, é?
- não. esse livro não existe. não consta da nossa base de dados, nem sequer do catálogo do autor.
- mas como é que não existe se eu tenho o livro?!
- se calhar tem outro destes que constam aqui na base de dados.
- sim, por acaso além do que lhe estou a pedir, tenho mais 4 desses que constam aí na base de dados.
- pois, mas não existe.
- não o têm, quer dizer.
- não. não existe.
- ok. boa tarde.
- boa tarde.

 

 

 

 

hão-de ainda chegar os dias frios de inverno, o vento gélido que arrefece as mãos. por enquanto, chegou a chuva. são estes dias que me aconchegam. que me recordam quem sou. o verão é um engano que deturpa os sentimentos.

 

 

 

 

«O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
ou quartos que os gestos não preenchem.

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto -
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.

O meu amor não se deixa dizer - é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervecente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.»

Maria do Rosário Pedreira - "O Canto do Vento nos Ciprestes"
um bom jantar. um bom vinho. a descoberta de uma pessoa fantástica. outra que já sabia fantástica. poesia. pintura. fotografia. literatura. banalidades. olhares cumplices. amigos inúteis.

 

sexta-feira, outubro 07, 2005   

 

flashback

 

um dia, melhor, uma tarde, reparou que só um enorme silêncio acontecia. de repente não havia mais nada. nem mãos no cabelo. nem gestos. nem dedos. nem cumplicidades.
de repente era como nos dias da infância. como naqueles em que já não havia ninguém para além da mãe que escondia as lágrimas enquanto estendia os lençoius no quintal. tudo em silêncio. foi então que ela aceitou que ele já não estava interessado. que o silêncio dele, a ausência dele, a ausência dos gestos dele, essas coisas assim, mais não eram do que uma maneira de acabar o que nunca tinham começado.
um dia apercebeu-se que ele tinha combinado outras coisas. com pessoas muito mais legítimas e compreensivas, e assim. e então ela foi à varanda para escorraçar as lágrimas. ele não fez como nos filmes. não foi atrás dela para a abraçar. também não a chamou quando ela foi embora. por isso, nos dias seguintes, foi o que não se viu.
ela pensava: ainda se ele gostasse muito de mim. muito, a ponto de me dar a mão na rua. de me abraçar na rua. de me levar com ele pelos dias sem ser só pelos fins de tarde.
um dia ele ficou em silêncio e ela não conseguir dormir com a ausência. ela descobriu que afinal, por mais que tentasse fugir, não conseguia deixar de sofrer. gostar é assim. um caminho para o desencontro.
por muito tempo, para o costume, nenhuma palavra foi dita. nenhuma palavra.

 

 

 

 

«Quando desejamos pomo-nos à disposição de quem esperamos», dizia o La Fontaine.
[gajo esperto, este]

 

quinta-feira, outubro 06, 2005   

 

escrito na ardósia

 

«podia esquecer-te para sempre, não fora a vertigem
da tua sombra a cercar os meus olhos»

g.pires

 

terça-feira, outubro 04, 2005   

 

 

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O'Neill

 

segunda-feira, outubro 03, 2005   

 

ruca*

 


às vezes, como hoje, tenho tantas saudades da minha mãe.

 

 

 

dejá vu

 


raquel costa

a manhã ensina-me a dançar pelo algodão enrugado, inventando a pele, e a esperar sem descanso que escorra pelos dedos, ainda, o resto do silêncio que a noite veio plantar, pálpebra a pálpebra...

 

 

pergunta-me [se te apetecer]

parece que foi ontem:

pronto, já passou:

os outros:

procura [se te apetecer, também]