quarta-feira, abril 26, 2006   

 

 


Abelardo Morell

«Sair dos dias. Não dormir. Não falar com ninguém. Ficar de fora do lá de fora. Ocupar o coração. À força. Ser como ele. É muito bom e faz muito bem. Espera-se um bocadinho e, pouco a pouco, ele começa a correr para dentro de nós, aflito por atenção. Traz as coisas que adiámos, em que não reparámos, que não tivemos tempo de cuidar. E primeiro vêm as mágoas. A felicidade que recusámos. Sem saber. Sempre sem saber. A tristeza de que fugimos. Voltam.

É muito bom e faz muito bem.

Sair de nós. Cair nos outros. Não escrever. Ler. Não pensar. Lembrar. Os amigos quietos. O murmúrio do riso que riram. A família parada. O colo onde cabe a cabeça. O amor adormecido. Estas coisas acordam. E sossega saber que nós não somos nada sem eles. E mesmo com eles, quase nada. Escravos de carinhos somos nós, seguindo atrás, de braços abertos, numa fila sem fim.

É muito bom e faz muito bem.

Sair dos trabalhos, do dinheiro, das palavras que nada querem ou conseguem dizer. Fazer gazeta. Faltar. Desobedecer. É um trabalho também. Não ir. Não responder. Não entregar. É cumprir também. Desmergulhar. Desfazer. Desacontecer. São tarefas também. Ainda mais difíceis, talvez.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da ordem. Cair na doçura do acaso. Trocar de caos. Descer. Vestir a mesma roupa. Não fazer a barba. Beber. Fumar. Sem pausa. Sem razão. Ceder. Emergir. Abandalhar. Fazer o que não se está a fazer. Esticar a corda. Não atender. Desarrumar os livros. Passear pela casa como se fosse uma cidade destruída. Estragar.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da vontade. Cair na estupidez. Não descansar. Ver televisão numa língua que não se compreende. Forçar. Esquecer. Fazer o que não apetece fazer. Contrariar. Confundir. Comer atum de conserva com uma colher. Pôr o despertador para acordar mal se comece a adormecer. Dizer disparates em voz alta. "Todos agora". Virar o bico ao prego. Arrepiar. Aprender.

É muito bom e faz muito bem.

Sair do corpo. Cair na alma. De chapão. Sem ver nada à frente. Receber os mistérios. Sem cerimónias. Sem compreender. Ser absorvido. Subjugado. E agradecer. Perder o norte, o fio, os sentidos. E gostar. Divertir. Desprender. Chafurdar na lama. Acriançar. Rir. Começar a chorar. Ser levado, enlevado, enganado, desprotegido, confuso, cruel. Desviado.

É muito bom e faz muito bem.

Sair da vida. Cair na morte. Sofrer. Iludir. Acabar. Permanecer na cama. Pensar em tudo o que se faz como se fosse a última vez. Esmorecer. Querer voltar atrás e fingir que já não se pode. Confessar. Pedir. Esvaziar. Ter pena de quem se foi e do que se fez. Rejeitar o perdão, a redenção, a última oportunidade.

É muito bom e faz muito bem.

É tão bom e faz tanto bem que, às vezes, cada vez mais, não apetece regressar. Tanto que só nos resta levantarmo-nos de onde caímos e, deixando-nos conduzir por tudo o que nos tolheu os passos desde o dia em que começamos a errar, na contramão das nossas almas, só nos resta procurar um sítio onde a nossa ida não se reconhece, não se aceita, não faz sentido, e entrar.

Entrar aqui. Daqui de onde nunca se sai. E ficar.»
Miguel Esteves Cardoso

 

 

 

perfeito?

 


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o amor?

 

 

 

 


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Peter Turnley

Observo-os de longe mesmo quando se separam.
Apetecia-me contar-lhe a ela que o adivinho em outros percursos, tecendo sonhos onde ela não entra, não pode entrar. Dizer-lhe a ela que o tempo em que ele não vem, o pedaço da noite que ele não partilha, passa-o numa outra casa, talvez tenha um corredor com uma janela para o rio, e nessa casa há outra gente que ela não conhece mas adivinha, e essa gente segreda-lhe a ele palavras ao ouvido.

 

 

 

constatação para o dia de hoje

 


o passado é um fardo demasiado pesado.

 

quinta-feira, abril 20, 2006   

 

[ volta-me-te ]

 


à altura do teu rosto
os meus olhos habitam no silêncio brilhante.
não olho: no concâvo vazio recebo-te
igual a ti, a teu lado,
teu rosto me alimenta
de fraterno orvalho.
tu modelas-me no antigo carinho das únicas
coisas preciosas,
refazes-me na transparência fraternal,
dás-me a forma translúcida da vida,
a sede luminosa em que tudo se renova.

antónio ramos rosa

 

quinta-feira, abril 06, 2006   

 

1009 ou mais...

 


mais.

 

terça-feira, abril 04, 2006   

 

espelhos

 


daqui


não te conheço e, no entanto, conhecendo-me, sei quase tudo sobre ti.

 

 

pergunta-me [se te apetecer]

parece que foi ontem:

pronto, já passou:

os outros:

procura [se te apetecer, também]