quarta-feira, março 30, 2005   

 

 

conto-te enrolado nos dentes
com lâmpadas acessas a caírem
no silêncio do teu corpo.

 

 

 

#9

 

e o mais estranho - como se nada fosse mais que este vasto silêncio - o mais estranho, é esta impossibilidade de permanecer.

 

 

 

 

empalecem as últimas sílabas do poema
e só as pálpebras secam
uma
a
uma

 

quinta-feira, março 24, 2005   

 

das mãos e da importância do sublinhado nos livros

 

«As mãos nos bolsos de Klaus. Como era estranho aquele seu gesto de esconder as mãos nos bolsos. As mãos e os olhos eram o fundamento da guerra: sem mãos é impossível odiar, odeias pelas pontas dos dedos, como se estes fossem o canal habitual e único de uma certa substância química má. As mãos nos bolsos são um processo de educar o édio, processo lento quando comparado com aquele bem mais forte que é a amputação dos braços. Mas só com as mãos nos bolsos os homens já acalmam.
Com as mãos nos bolsos um homem percebe que não é Deus. (...). Se tocares no mundo com a cabeça obterás desse toque sentimentos secundários; afastados de uma intensidade mínima a que a existência das mãos te habituou. As mãos tornam-te intenso. (...).
Claro que as mãos nos bolsos fazem aumular emoções no resto do corpo. Como se os dedos, às escondidas, destapassem algo. Com as mãos nos bolsos sente-se mais, pensa-se menos.
(...)
As mãos são orgãos susceptíveis de se emocionarem. As mãos não terão apenas sentimentos tácteis, mas também sentimentos mais complexos: como a grande tristeza.»
- Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump

 

quarta-feira, março 23, 2005   

 

constatação nocturna

 

a solidão

 

 

 

constatação vespertina

 

o sol

 

 

 

constatação matinal

 

a limpidez do rio.

 

segunda-feira, março 21, 2005   

 

obituário

 

«Quando o vento se levanta e passa, tua cabeça adormecida põe-se a brilhar. Em redor dela um halo de sombra onde a minha mão entra, vagarosamente, pedindo-te um sinal.
Procuro o rosto com os dedos afiados pelo desejo. Toco a alba das pálpebras que, de súbito, se abrem para mim.
Um fio de luz coalha na saliva do lábio.
Ouvimos o mar, como se tivéssemos encostado a cabeça ao peito um do outro. Mas não há repouso nesta paixão.
O dia cresce, sem luz – e os pássaros soltam-se do pólen dos sonhos, embatem contra os nossos corpos.
Nada podemos fazer.
Um risco de passos ensanguentados alastra pelo chão da cidade. A noite cerca-nos, devora-nos. Estamos definitivamente sozinhos.
Começamos, então, a imitar a vida um do outro. E, abraçados, amamo-nos como se fosse a última vez...
O tempo sempre esteve aqui, e eu passei por ele quase sempre sozinho.
No entanto, recordo: deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor.
Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar. Agora, odeio-te por não me pertenceres mais. Odeio-te. Abro os olhos. Regresso ao meu corpo e odeio-te. E, quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria – mas ambos sabemos que o perdão não existe.
Se fugias, perseguia-te. Mas o olhar começava a cegar. Sentia-te, já não te via. E o pior é que o tacto também esqueceu, rapidamente, a sensualidade da pele e o calor do sexo. O rosto aprendido de cor.
Hoje, tudo se sobrepõe. Nomes, rostos, gestos, corpos, lugares... um montão de cinzas que me deixaste como herança.
Não devo perder tempo com o ciúme. A paixão desgastou-me. E nunca houve mais nada na minha vida – paixão ou ódio.
Só isto: se me aparecesses agora, tenho a certeza, matava-te.»

- Al Berto, O Anjo Mudo

 

sexta-feira, março 18, 2005   

 

?

 

Demónios interiores
Jorge Palma

Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores

tratei-os com carinho
pus jarra de flores
abri o melhor vinho
trouxe amêndoas e licores

chamei-os pelo nome
quebrei a etiqueta
matei-lhes a sede e a fome
dei-lhes cabo da dieta

conheci bem cada um
pus de lado toda a farsa
abri a minha alma
como se fosse um comparsa

E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Adeus, foi um prazer!
disseram a cantar
mantém a mesa posta
porque havemos de voltar
--------X-------

O que fazer quando eles batem à porta e nos convidam para jantar?

 

quinta-feira, março 17, 2005   

 

#8

 

Sonho muitas vezes que a cidade está submersa.
Acordo com as mãos enrugadas e um ardor a sal que quase me cega.

 

 

 

 


a gota que transborda
a flor fora da jarra
não me pertence

o caudal corre para longe do caule.


 

quarta-feira, março 16, 2005   

 

Goodbye Blue Sky*

 

Look mummy, there's an aeroplane up in the sky

Did you see the frightened ones?
Did you hear the falling bombs?
Did you ever wonder why we had to run for shelter when the
promise of a brave new world unfurled beneath a clear blue
sky?

Did you see the frightened ones?
Did you hear the falling bombs?
The flames are all gone, but the pain lingers on.

Goodbye, blue sky
Goodbye, blue sky.
Goodbye.
Goodbye.
Goodbye.

The 11:15 from Newcastle is now approaching
The 11:18 arrival...


* Pink Floyd - The Wall

 

 

 

 

«(...)
os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.»

- Al Berto, Horto de Incêndio

 

sexta-feira, março 11, 2005   

 

 

rio de rios
que contas darei
de tantas gotas?

mais próxima do chão carrego as outras
elevo-as e levam-me
juntamente para o mar.

 

 

 

#7

 

Não quero demorar tanto tempo os meus olhos na parede.

 

sexta-feira, março 04, 2005   

 

tempo

 

Tenho tempo para aqueles que nada me dizem. Para quem não gosto e, muito provavelmente, para quem não gosta de mim. Passo a maior parte do meu tempo com essas pessoas. Pura perda de tempo. Para os que amo, poucos na realidade, para quem me faz sentir viva e me desperta, não tenho tempo. Esgoto todo o meu tempo no existir quotidiano das 9h às 19h. No não-existir.
«Cansados vão os corpos para casa...»*
*Sérgio Godinho

 

quinta-feira, março 03, 2005   

 

 

Pegar na mochila e rumar ao sul. Trocar o Douro pelo Tejo. Vaguear pela cidade à procura de qualquer coisa (de mim, principalmente). Evitar trocar os «b's» pelos «v's» durante 2 dias.

 

quarta-feira, março 02, 2005   

 

 

Soube no teu corpo
o lugar do meu

o rumor dos barcos
na espuma da voz.

 

 

 

 

«Amo-te no intenso tráfego
com toda a poluição no sangue.
Exponho-te a vontade
o lugar que só respira na tua boca
ó verbo que amo como a pronúncia
da mãe, do amigo, do poema
em pensamento.
Com todas as ideias da minha cabeça ponho-me no silêncio
dos teus lábios.
Molda-me a partir do céu da tua boca
porque pressinto que posso ouvir-te
no firmamento.»

- Daniel Faria

 

 

 

#6

 

Entre o pressentimento e a aparição voamos sobre o medo. Nos olhos, a intacta clareira da solidão.

 

 

pergunta-me [se te apetecer]

parece que foi ontem:

pronto, já passou:

os outros:

procura [se te apetecer, também]